Um "couraçado" primordial no mar dos Açores

Publicado a
Atualizado a

"Em breve metemos por terra dentro e pouco depois começávamos a subir a montanha. Deixando para trás a costa, a estrada segue por sobre placas ondeantes de lava semelhantes a largo pavimento de asfalto, onde aqui e além se viam pedras soltas; das fendas da penedia saíam finos veios de ervas e algumas silvas, únicos sinais de vegetação. Tudo o mais era negro e desolador." Esta descrição do início de uma escalada da encosta do vulcão do Pico pode ler-se em Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas, de Joseph e Henry Bullar (Ponta Delgada, 1986), obra da primeira metade do século XIX e que fixa o quotidiano do arquipélago na época. Mas este livro é, principalmente, uma detalhada descrição da paisagem açoriana. Paisagem que permanece inalterada em muitos locais. O Pico, e a sua beleza "soturna", é um desses locais.

Visitar o "grande couraçado escuro e compacto no mar ermo", como definiu a ilha Vitorino Nemésio, é permitir-se o regresso a um tempo e a ritmos que, passe a banalidade, se extinguiram perante as exigências da contemporaneidade. A escalada do Pico será, talvez, o auge desse distanciamento, exigindo-se tempo, boa condição física e boas condições meteorológicas. Saibam os timoratos que é possível chegar de viatura até aos 1200 metros de altitude - isto é, um pouco mais de metade do percurso até ao cume.

Ao longo da escalada pode observar-se alguns dos espécimes mais interessantes e, nalguns casos, únicos da flora açoriana; aqui e também na lagoa do Caiado e nas Lajes do Pico, respectivamente, na zona nordeste do planalto que forma boa parte do Pico e na costa sul, indicam David Sayers e Albano Cymbron em Azores - Garden Islands of the Atlantic (ed. dos autores, 1991), série de sugestões para a descoberta do Pico e de outras ilhas do arquipélago.

Diz-se que o Pico nunca está igual e quem chegou ao cume assegura que o panorama é de cortar a respiração, de devolver ao olhar a dimensão primordial das coisas. Primordial é, aliás, um vocábulo que tem sentido aplicar à paisagem dos Açores, no Pico e nas outras ilhas - em locais onde a natureza surge como é possí- vel conceber ter sido na sua génese.

Mas a ilha que defronta o Faial à "sombra maciça do Canal" (Nemésio) não abriga só a maior elevação em território nacional; nela, como no restante arquipélago, a lava espalhou-se sobre a terra formando os mistérios (campos negros de lava solidificada), por vezes soçobrando o mar. Vulcão adormecido, o Pico possui, naturalmente, inúmeras grutas e furnas, passagens para as entranhas de uma terra que produz ainda o "verdelho", um vinho que obteve no passado reconhecimento internacional.

A travessia do Canal - feita em Julho, com bom tempo - consegue, todavia, evocar receios de antigas travessias, as ondas cavadas assombrando embarcações e passageiros, trazendo à tona de água o eco do profundo vale submarino que distancia as duas ilhas. O mar nos Açores é para temer e, por vezes, para vencer.

Memória dessas vitórias e de outras tantas amargas derrotas noutros tempos é o Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico. Espelho daquela que foi uma das principais actividades do arquipélago até meados do século XX, nele se traça a história da caça à baleia. A primeira canoa açoriana terá sido lançada à água precisamente nas Lajes do Pico, no final do século XIX.

Sendo a segunda maior ilha, em área, do arquipélago, o Pico não se vê - e muito menos se conhece - num só dia, ainda que boa parte dos locais de maior interesse sejam facilmente acessíveis por estrada. Mas nos Açores, e no Pico, o verdadeiro conhecimento da terra faz-se caminhando.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt